Mais uma charada geopolítica

Por Cesar Vanucci *

“Acusar o Catar de financiar o terror é pura 
hipocrisia. Os sauditas o fazem em maior escala.
(Antônio Luiz M.C.Costa, jornalista)

A confusão das arábias vivida no Oriente Médio acaba de ser acrescida de uma outra charada de complicada decifração. Como sabido, esse convulsionado pedaço de mundo é palco, desde sempre, de um inextricável jogo de conveniências políticas e econômicas. Categorizados observadores dos acontecimentos internacionais surpreendem-se em palpos de aranha para definir com exatidão, nas movediças manobras executadas pelos protagonistas do jogo, quem é aliado ou quem é inimigo de quem entre os países e grupos envolvidos nos conflitos.

No mais recente incidente, registrado logo depois da passagem do presidente Trump pela região, a Arábia Saudita, Bahrem, Emirados Árabes Unidos, Ilhas Maldivas, Egito e facções dos conturbados e divididos territórios do Iêmen e Líbia romperam relações com o Catar, um dos membros do “Conselho de Cooperação do Golfo”, constituído pelas monarquias árabes. Um bloqueio diplomático, financeiro, aéreo, marítimo e terrestre foi imposto ao diminuto e rico território pela coalizão liderada pelos sauditas.  
Os motivos alegados para o impactante procedimento, segundo análises razoavelmente confiáveis, são pouco convincentes. Há menções a apoios do Catar a grupos sectários empenhados na desestabilização da área e, também, a incitações da mídia do país a práticas subversivas contra os demais governos. Anota-se também, como fator de desencadeamento da crise, a publicação, em sitio de uma agência estatal do Catar, de matéria aparentemente simpática ao Irã e aos grupos “Irmandade Muçulmana”, hostil ao governo do Egito, e “Hamas”, que opera em conflitos a partir de sua base no Líbano. Declaração enfática do soberano do Catar, o Emir Tamim, de que essa matéria seria falsa tornou tudo mais desconcertante. O texto teria sido produzido com intuitos malévolos por especialistas em propagação de mentiras comprometedoras. Especula-se que a provável ação clandestina tenha sido encomendada pelos próprios serviços secretos da Arábia.

A situação no território alvo do bloqueio ficou dramática. O país vale-se das fronteiras sauditas e dos demais Emirados para importar alimentos e outros bens de consumo essenciais. De modo a evitar colapso no abastecimento, o Catar recorreu ao Irã buscando criar outros circuitos de suprimentos.

É curioso, nessa embrulhada, registrar que no Catar está localizada a mais importante base militar dos Estados Unidos no Oriente Médio. A base de Al-Udeid operava anteriormente na Arábia Saudita. Mas em 2003, por exigência de correntes fundamentalistas extremadas, os militares estadunidenses foram expulsos dali, sob o argumento de que a terra sagrada de Maomé não poderia abrigar infiéis armados. A base no Catar concentra aviões empregados em bombardeios na Síria, Iraque e Afeganistão.

Não poucos analistas consideram a atitude da Arábia Saudita e aliados de indisfarçável hipocrisia. Mesmo que não seja totalmente destituída de fundamento a revelação de que cidadãos do Catar figurariam como doadores de recursos aos extremistas muçulmanos, é fora de qualquer dúvida que o grosso no financiamento dos tresloucados terroristas procede justamente dos países que acusam o Catar. Ou seja, a enigmática Arábia Saudita e seus satélites dos Emirados.

Desavença entre países arábes pode ser decorrente da abertura midiática do Catar, que não oferece restrição ao trabalho da famosa “Al-Jazira”

O mais provável é que a desavença decorra da abertura midiática do Catar, que não oferece restrição ao trabalho da famosa “Al-Jazira”.  Essa rede de tevê exerce enorme influência no mundo árabe, ao divulgar o que rola politicamente e militarmente ali. Sauditas e aliados estariam empenhados em silenciá-la. 
 
É oportuno sublinhar mais alguns desnorteantes dados sobre os misteriosos caminhos palmilhados pela geopolítica dominante na região. O governo britânico promoveu inquérito sobre o financiamento do terrorismo islâmico, chegando à conclusão de que a fonte principal dos recursos provinha da Arábia Saudita. O jornalista Michael Moore, em livros e documentários televisivos, acusa reiteradamente facções jihadistas enquistadas na realeza saudita de patrocinarem as ações da Al-Qaeda e do Talebã. São dele as revelações de que nas mesquitas de Riad a derrubada das “torres gêmeas” foi celebrada com “fervor religioso”, bem como a incrível informação de que a família do ex-presidente Bush mantinha vinculações negociais de grande envergadura com dirigentes sauditas aparentados de ninguém mais do que Osama Bin Laden.

As polêmicas mensagens eletrônicas de Hillary Clinton denunciadas na campanha presidencial nos EUA falavam do forte envolvimento da realeza saudita no financiamento terrorista. E, pra arrematar, o próprio Trump, em pronunciamentos anteriores à posse, chegou a acusar figuras do governo da Arábia Saudita por cumplicidade nos eventos de 11 de setembro.

Pelo visto, o novo incidente não passa de mais um capítulo dessa tremenda “confusão das arábias”.

*  O jornalista Cesar Vanucci (cantonius1@yahoo.com.br) é colaborador do Blog Mundo Afora.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.