Zé Som, além de bom, o pai de Visnu. Política? Que nada! Vida…

*Por Flávio Carvalho

Para Massimo Pietrobon, amigo, artista.

É só ter calma e tudo vem. Vou prosseguir, vou sempre assim. Eu sou do bem”. (Naná Vasconcelos)

A grande novidade do movimento social associativo brasileiro em Barcelona, nos últimos anos, é uma iniciativa chamada Ciclo Mujeres (assim, em castelhano, tentando diálogos com outras culturas), criado pela Assembleia de Mulheres Brasileiras contra o Fascismo. Pelo que sei deste potentíssimo grupo de mulheres, foi criado no âmbito da campanha internacional Ele Não. Evidentemente contra Bolsonaro e a eleição inédita de um assumido fascista para a Presidência do Brasil.

Nesse grupo, muito ativo nas redes sociais, somente de mulheres (como creio que deve ser), estão todas as minhas grandes amigas, além de – não acredito em coincidências – estarem todas as melhores ativistas sociais brasileiras em defesa dos direitos humanos na Catalunha. De fato, referentes europeias do nosso melhor Brasil. Comecei agora mesmo a digitar seus nomes e logo apaguei, com medo de esquecer qualquer nome – que para mim representaria mais que um nome. Representa uma imensa história. Vidas imensas, tal como se deve viver.  

Porque começar esse escrito contextualizando assim, “politicamente”? O que em princípio seria um “nada a ver”, pra mim tudo interliga. Foi por aqui que me chegou primeiro o nome da filha de um “velho conhecido”. Como se eu estivesse predestinado a conhecer Visnu.

Também porque estou revendo, num gerúndio contínuo, todos os meus valores e tentando chegar a algumas importantes conclusões. Até pouco importa se eu chegarei ou não.

Para mim, a melhor “política”, agora mesmo, é falar de nós mesmos. E no Ciclo Mujeres encontrei o fenômeno sociocultural mais interessante. Empatia. Sororidade. Elas acreditam (e eu também) estar ajudando a mudar o mundo, se ajudando. Se acompanhando, pra dizer melhor. Não é pouca coisa, embora pra um esquema mental meramente masculino – do que eu tento fugir, cada dia – isso possa significar quase nada.

Não é de hoje que insisto em que falar de saudade, por exemplo, pode ser mais revolucionário do que falar de tentar democratizar a burocracia (antidemocrática, por exemplo, na sua essência). Ou falar da morte, nos tempos que vivemos, somente pra pegar outro bom (ou mal) exemplo. Principalmente quando a gente sente que pra um migrante, toda morte é diferente.

Pois é nesse caminho diferente, transformador, realmente revolucionário – no sentido estrito da palavra – que elas (me) embarcaram. Essas brasileiras, grandes amigas.

Agora peço permissão pra deixar de lado toda essa retórica, pra falar diretamente de Visnu. Todo esse arrodeio foi porque nela eu queria chegar. Mas com ela até essa volta é importante.

O seu pai, Zé Som, deixou-nos há poucos dias. E todo aquele movimento que comecei falando, no começo desse texto, nada seria se não fosse a presença, entre nós, de mulheres como ela.

Visnu é Bióloga e Doula, palavra ainda pouco conhecida que designa o importantíssimo papel das profissionais que acompanham a gravidez, o pré-parto, o parto e o pós-parto – a integralidade do nascimento de uma nova vida, enfim. Qual profissão mais maravilhosa neste mundo? E porque ganha ainda mais relevo falar de nascimento, morte e vida? Renascer…

Conheci, afinal, Visnu em Barcelona, num Sarau. No meio de muita música e poesia. Nunca um abraço reconectou-me tanto com Olinda, o lugar de onde eu vim. Sou grande amigo do pai (Serginho) do seu sobrinho (Rodin). E como todo bom olindense, conheci seu pai, Zé Som. Um dos melhores artistas plásticos de uma cidade repleta de artistas, nossa Olinda.

Além disso, toda a família morou na praça preferida da minha cidade preferida, na Praça dos Milagres, em Olinda. Naquela Praça onde eu vivi e onde eu tantas vezes renasci.

Zé Som é um artista tão bom (artista não morre, nunca!), que um dilema me persegue desde o dia que lhe conheci, na sua casa: lugar de vida; trabalho já englobado. Como ele pinta com os dedos, os seus quadros correm sempre o risco de se perder por esse “detalhe”, mais que pela qualidade (excelente! Creiam-me ou busquem na Internet). Como assim, menos pelo conteúdo, do que pela forma como pinta? Nada disso! Não seria o artista que é se não acreditasse nas suas próprias qualidades. E quem o conhece sabe: homem “avançado”.

A frase mais impactante do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto sobre o pintor catalão Joan Miró foi essa: “Miró não pinta quadros; Miró pinta”. Sobre Zé Som escutei um dia de outro amigo, grande artista das Olindas: “não é que Zé Som seja o artista que melhor pintou Olinda; o que foi – sim. Porém, Zé Som não somente pinta Olinda. Zé Som pinta”.

Para mim, ele pinta. Ainda!

E pela sua história de vida – melhor ainda explicada não somente por uma filha, mas por… Visnu! – tenho aquela sensação de que conhecer o homem, o idealista, sempre explica melhor o trabalho do artista.  Zé som é a vida sem medo, em cada dedo, em cada tinta.  

Seja sincero com você mesmo e tente lembrar o impacto que uma obra de arte algum dia lhe provocou. Recordo como se fosse hoje, entrar numa ONG muito significativa para a minha vida (o Centro de Cultura Luiz Freire) e lá deparar-me com uma paisagem olindense – o motivo pictórico preferido do artista – que me marcou pelo resto do que me resta de vida.

Lembro-me de haver conhecido o neto Rodin (dias depois de visitar uma exposição do famoso escultor, que lhe deu o nome, no Mamam, no Recife) com o avô Zé Som ao lado, todo orgulhoso do nome do netinho.

E não me sai da cabeça o tentar falar ontem mesmo com Visnu, depois de ver no Facebook (do amigo também olindense Álvaro Pantoja, que atualmente vive em Portugal), a notícia sobre as homenagens que toda a Olinda não para de fazer ao grande Zé Som. Álvaro, grande mestre das danças circulares, simplesmente postou várias fotos de Zé Som com seu nome acompanhado de uma palavra: “Viva”. Suficiente. Desmoronei-me. Primeiro pensando “não sei por que”. No minuto seguinte, respondendo a mim mesmo: “é claro que eu sei”. Eu sei sim.

Não querendo sair logo da emoção, uma questão, não menor, me invade. Sobre migração.

É a terceira vez que me acontece, em relação à minha migração às terras da Catalunha.

Vai-se o pai de uma amiga e um pensamento me intriga.

Por melhor artista que seja – e o é! – a dor da perda e a profunda empatia com o sentimento da amiga me reafirma: é o pai de Visnu. Muito mais que um amigo, o homem bom, o artista, Zé Som.

E isso é muito demais, me perdoem o pleonasmo. Mas é que Zé Som, se não fosse quem é, o pai de Visnu, já seria um artista pra lá de bom.

E assim a grande perda se duplica – ou multiplica. Já viram que gosto dessa palavra: ressignifica.

A maravilha é que quando meu pai morreu – faz pouco tempo e eu estando aqui de longe, como Visnu – aconteceu comigo o que hoje sinto pela amiga: intensa empatia. Mais que isso, certamente nem precisa. Mas escrevo, por terapia. E ousado, compartilho. Apresentem-me se conhecerem, por favor, um escritor que escreve para não ser lido. Eu duvido…

O meu pai não era artista como o Pai de Visnu. Mas todo pai, pra nós, de longe, migrantes, sempre será o nosso melhor artista.

Hoje é nosso, por tudo isso, o pai de Visnu. Atenção: mais que o artista. O pai de Visnu. Um homem bom. Zé Som.

Barcelona, como se fosse Olinda, verão de 2020.

Flávio Carvalho (@1flaviocarvalho) é olindense, escritor e sociólogo.

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