Cruz de São Jorge para um catalão-brasileiro, escritor. A Terra é virgem, sim

Por Flávio CarvalhoE aquilo que neste momento se revelará aos povos. Surpreenderá a todos, não por ser exótico. Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto, quando terá sido o óbvio” (Um Índio. Caetano Veloso).É perfeitamente compreensível que eu, brasileiro na Catalunha, me interesse tanto pela história dos catalães no Brasil. E, mais ainda, para os catalães que regressaram de um Brasil que, um dia, eu já senti como meu. Entre estes, um nome me persegue: Enric.Esse tema do regresso é a versão psicanalítica daquela pergunta que não cala jamais, dentro de cada migrante, esses seres humanos sobreviventes de um gerúndio insaciável: voltar? Quando? Pra onde? Porque?Acordei com a notícia de que a mais alta honraria do Governo da Catalunha, da Generalitat da Catalunya (a Cruz de São Jorge, o padroeiro da Catalunha), será concedida a um bom amigo. Artista. Escritor. Desenhista. Contador de histórias. Ativista de defesa da língua herdada da sua mãe (sim, uma língua ameaçada, desde muitos e muitos anos, o idioma catalão).Duas pessoas me apresentaram o catalão Enric Larreula ao mesmo tempo: um amigo escritor, historiador, anarquista, morador do meu pueblo, chamado Josep Pimentel; e a avó dos meus filhos, uma voraz leitora, socialista, filha de exilados catalães, chamada Anna Gual. Ambos me trouxeram o mesmo livro de Enrique, certo dia de primavera. Eu não acredito em coincidências.Terras Virgens, um dos livros preferidos de Anna, que não para de elogiar a narrativa de Enric, trata da construção de um paraíso anarquista imaginário, uma comunidade de catalães emigrados ao Brasil. É realmente um livro recomendável. Utopia extrema no País do Futuro; expressão a ferro e fogo que nos foi cravada pelo imenso escritor europeu, Stefan Zweig.Em meio à Sindemia, meu amigo Rodrigo, carioca, editor do portal Aqui Catalunha, me sugeriu uma colaboração escrita sobre a obra de Enric. Escrevi um texto inteiro, bastante empolgado. “Necessitamos apenas de um parágrafo, Flávio”. Eu sorri e guardei.Sempre que montamos uma parada de venda de livros na festa literária de Sant Jordi, em Barcelona, Enric aproveita pra autografar alguns dos seus muitos livros. Já não me surpreende a quantidade de pessoas que dizem ter lido os (também muitos) livros juvenis que escreveu.Meus amigos brasileiros se surpreendem quando lhes explico que “aquele senhor”, tranquilo, ao nosso lado, é um escritor já lido por muita gente daqui. Modesto, humilde, Enric Larreula não é, realmente, o perfil de um flamante escritor. É avesso a exibicionismos. Um ser humano profundo.Quando ainda existia um espaço cultural brasileiro chamado Maloca, também em Barcelona, Enric veio – sempre muito gentil – apresentar-nos livros seus. E creio que a medalha de honra ao mérito que lhe será concedida é um ato de profunda justiça com um homem que não é só ele. E que é fruto. E flor.Recordo pedir-lhe uma foto para ilustrar o cartaz daquela atividade, no Maloca. Enrique enviou-me uma foto belíssima com o peito nu pintado com tinta de Urucum, dentro de uma típica casa indígena. Impressionante. De uma luz belíssima. Pedi que autografasse a foto e ele me deu de presente o livro onde havia aquela mesma foto, autografando-o. Uma honra para mim, emocionado, naquele sábado.Os fatos mais preciosos da vida foram vividos em meio àqueles povos indígenas”, sentenciou Enric.Não, companheiro Enric. Os fatos mais preciosos da vida são os que ainda nos farás viver: para que os povos brasileiros que estimas, possam mais que sobreviver. Sua luta é a minha. O seu povo, em dobro, é o meu. Visca Catalunya. Viva o Brasil verdadeiro.Felicitats, company. Família Larreula, una abraçada.PS.: Pouco sabe, ainda, o Brasil, sobre o imenso legado das lutas travadas por dois dos mais intensos catalães que eu já tive o privilégio de conhecer pessoalmente. Principalmente no tocante à defesa dos direitos dos povos indígenas do nosso país. Pedro Casaldáliga e Enric Larreula são dois catalães que honram o nome da sua terra – da Nossa Terra.Para Rodrigo, Marta Larreula, Pimen, Anna e Enrique (Castro Ferro; o outro Enric, parecido a este). Aquele abraço.Barcelona, Primeiro dia do mês de dezembro, do ano 2021.

Flávio Carvalo (@1flaviocarvalho./@quixotemacunaima) é sociólogo e escritor

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.